terça-feira, 18 de abril de 2017

Limbo

 




O véu noturno cobre a provinciana cidade. Nas ruas, silêncio. Meia-noite aproxima-se, e uma silhueta caminha por entre os postes de luz. A coloração dourada causada pelos postes de luz acompanham o som dos coturnos.

Já não lembro por quê razão estou divagando à essas horas. Por um momento, não recordo quem sou. Uma dor lateja em minhas mãos. Tento gritar para pedir ajuda, mas não sai som algum.

Sigo em passos de trote a misteriosa sombra, que aos poucos exala um perfume nostálgico. Ela começa a correr. Ao que percebo, deslocamos quilômetros, até nos afastarmos da pouca esperança dos faróis urbanos.

Ao olhar pra trás, uma cidade fantasma. Não há gente em lugar nenhum. Apenas o vulto que escolto silenciosamente. É quando percebo um enorme abismo, no qual transpassa um rio desbotado, cercear todo limite da pequena urbe.

A figura obscura, até então de costas, permanece diante de um arco de pedra com alguma inscrição em língua obscura, vira em minha direção e abre os lábios trêmulos.

– Tu não lembras de nada, não é?

O semblante de um rosto masculino, maquiado de dor, carrega resquícios de uma longínqua humanidade. Rugas preenchem o contorno das bochechas. Os cabelos mal cuidados cobrem algo que já foi um rosto. Medo transpira.

E num piscar de olhos, o semblante dá meia volta adentrando no arco e desaparece despenhadeiro adentro.

Retorno para a cidade em desespero. Não há marcas nem outdoors, apenas pontos de interrogação em todos os estabelecimentos. Cada casa que adentro está vacante de vida. Não há móveis em nenhum lugar. Uma sensação de familiaridade me envolve entre as construções vazias que preenchem o cenário distópico.

Percebo que estou só. Não sinto nem alegria, nem tristeza, nem fome, nem desejo. Sem sono, embora o cansaço e a loucura permeiam minhas entranhas. Fecho os olhos, mas não consigo dormir.

Apenas alguns minutos parecem anos que passam depressa nesta eterna noite. Sem amanhecer. Sem lembranças.

Quando o último suspiro de esperança esvai-se de meu corpo, escuto de longe um gemido.

Caminho em direção ao grito. É quando um frio macabro percorre minha espinha. Reconheço a rua, e nas penumbras do luzeiro, observo um jovem rapaz.

Seu olhar rubro e demoníaco me encara. E como um animal feroz atrás de sua presa, inicia sua caça. Ódio mortal emana de suas garras. Turbilhão de angústias trespassam meu estômago. Apresso-me os passos até chegar no arco de pedra nos confins do território.

Coloco-me diante do arco e é então que consigo ler a inscrição.

“Vós que aqui entrais, abandonem toda esperança”.

Viro-me para meu perseguidor e é então que o reconheço. Sou ele.