O Leão Alado
Memórias, crônicas, pesadelos e surtos de Marcio Hasse Albino
terça-feira, 18 de abril de 2023
Vizinho, tô aqui pra reclamar do barulho.
Sábado a noite e do outro lado da parede fria do quarto outra história acontece. Milhões de outras possibilidades separadas por 20 centímetros de tijolo. Naquela negritude algo me incomodava: o barulho.
Toquei a campainha e bati a porta de alguém que sequer lembro o nome, embora conheça figuras do outro lado do planeta. Ok, conhecer é muito pretensioso, mas ao menos sei como se chamam. Lá estava ele, cabelos com a cor de últimos dias da juventude, encorpado, vestindo pijamas, rugas na testa e um olhar surpreso.
"O-oi... vizinho, posso ajudar?", parece que o desconhecimento acerca do nome é recíproco.
"Estou aqui para reclamar do barulho", disse em tom levemente agressivo.
Ele revirou os olhos como quem retribuiria a ofensa. Instintos animais se encontrando na fúria de uma afirmação sem resposta.
"Que barulho?", exclamou. "Durante os cinco anos que vocês moram aqui ao lado jamais aumentamos o volume, ou demos uma festa, ou dormimos depois das dez. Que história é essa?!".
Gargalhei. "Exatamente isto. Vizinho, tô aqui pra reclamar do barulho que não escuto há cinco anos".
Jamais ouvi um orgasmo do outro lado da parede ou as conversas de alguém que bebeu além da conta. Me incomoda o barulho que não existe, o silêncio que sugam anos de uma existência que dura poucas décadas. Por favor, quero mais incômodo, quero motivos pra fofoca. Sua quietude está me matando.
Desconcertado, nos despedimos.
Andei cinco passos e então ouvi uma pergunta.
"Qual o seu nome mesmo, vizinho?".
sexta-feira, 2 de dezembro de 2022
DEUS TEM AIDS | Um texto de Marcio Hasse Albino
Deus contraiu HIV num banheiro público, do sétimo que ejaculou, ou foi do marido do qual Deus é fiel, em sua casa limpa cheiro de lavanda, voltando da missa. Deus contraiu o vírus quando nasceu. Não sabemos.
Deus se sentiu culpado. Se tivesse descoberto outra enfermidade, câncer talvez, teriam tido piedade de Deus e feito campanhas de arrecadação. Não. Deus mereceu ter aids, disseram.
Deus ficou doente. Chorou amargamente enquanto olhava seus sarcomas. Sentiu-se sozinho e abandonado. Definhou numa cama de hospital, cercado por duas camadas de avental. Por vezes, havia uma moça que tocava em Deus em carinho e dizia que tudo ia ficar bem. Estava enfermo demais pra lembrar o nome dela.
Tentaram genocidar Deus em silêncio. Conseguiram. E Deus morreu milhões de vezes, uma vida por vez.
Deus está morto…
Seu sangue positivo está em nossas mãos.
Ninguém recitou o kadish para Deus em seu funeral.
Deus teve AIDS. Deus tem AIDS. Deus terá AIDS. Vai Deus morrer pra sempre?
Alguns dizem que Deus tomou antirretrovirais e ficou indetectável. Está corado e ganhou peso. Será que Deus vive?
Outros sussurram que está namorando, relacionamento monogâmico. Já eu acredito que Deus ama todas as pessoas, sem exceção.
Há ainda quem diga que Deus enche balões com seu sangue e os arremessa em políticos fascistas. Soroterrorismo.
Será que, o que dizem sobre Deus por aí, é verdade?
quarta-feira, 30 de novembro de 2022
Zemer Atik - Português
Pesadelo de 2015
Havia passado das sete da noite, estava na faculdade. Nostalgia.
Mas não era a minha faculdade, ao menos não no tempo que estudei, era como se estivesse no futuro uns 200 anos, e tudo era mais moderno e ampliado, mais construções, mais verde e muita gente. Muita gente mesmo, falando de assuntos do século XXIII.
Estava sentado em uma mesa, tomando algo como um suco e conversava com alguém, quando ao fundo ouvi vozes de desespero.
"Não pule! Não pule!"
Do quinto andar de um edifício de salas, um garoto lança seu corpo ao chão.
Desta vez, as vozes de desespero tornaram-se gritos.
Mas não foi apenas ele, do lado direito, próximo a mim, outro garoto pula do prédio.
A euforia se instala. Todos correm para lados distintos com medo.
Busco refúgio amedrontado.
O caso isolado logo torna-se a regra, a sensação de nostalgia que até então era tranquila dá lugar para uma música dissonante de piano, as cores começam a desbotar, e o horror passa a imperar.
Um por um, corpos se lançam do topo dos edifícios estudantis.
Um grupo de pessoas, liderados por uma loira com olhar feroz, olham para mim com olhar de desprezo.
Todos vestem blusas pretas e parecem estar maquinando algo.
O vermelho sangue toma conta do verde grama.
Os suicidas gritam palavras imcompreensíveis.
Busco proteção embaixo de um toldo, corpos caem do meu lado.
Posso ouvir os ossos quebrados, o sangue jorrando de pessoas em agonia por não terem morrido com a queda.
Meu coração dispara, acordo as seis da manhã num quarto escuro e frio... com a incerteza de sair da cama e descobrir que isso está acontecendo lá fora.
Efavirenz.
sábado, 13 de outubro de 2018
Como se come uma coxinha?
Dois homens sentam-se numa daquelas cafeterias à la brasileira. Sim. Dois homens. Sim.
Daqueles com pênis. Boteko seria um
nome conceitual na gringa.
É o ambiente no qual o aroma do café com leite, porém mais leite
do que café, entrelaça-se com o cheiro da reciclagem perpétua do óleo de
cozinha.
Ambos sentam-se juntos, um com aliança, outro não. O pedido? Uma
coxinha. Pra cada. O atendente é incrivelmente simpático e fala algo sobre o
clima.
Enquanto isso, na mesa, suor de macho com CLT. Distintos dos
macacos de 2001 que encontram um monólito e repensam sua existência, estes
provavelmente nunca fizeram uma pergunta para si. Fiz isso por eles.
Preconceito meu?
Um comeu a coxinha pela bunda e outro pelo bico. Todos sabemos
que quem come pelo bico não resolveu seu complexo de édipo. Quanto a mim,
apenas engoli uma banana e fui pra casa.
Curioso com quem estava usando a aliança?
sábado, 17 de março de 2018
Curitiba, março de 2018
A leve brisa
de outono trouxe consigo ressignificâncias de todas as proporções. Fora neste
momento, na capital, famosa por sua gelidez climática e comportamental, que uma
voz rouca quebrou o som do vento.
- Eu sou meteorologista.
É claro que não foi assim. Ao menos seria divertido se as
primeiras apresentações não estivessem obrigatoriamente associadas com a
profissão. Houve uma conversa trivial antes. Mas a licença poética de um
casi-sacerdote climático, dado o contexto curitibano, tem lá sua dulia.
- Prepare os casacos, pois
a temperatura, não sei se viu, vai realmente chegar a 3 ou 0 graus. Mas será
frio com sol a partir de domingo.
- Tenho apenas um poncho
listrado. - respondi.
De alguma forma, o percebi afeiçoado, e quis me acompanhar.
Seguimos alguns passos até o banco, onde ele ficaria. Senhor, gentil,
provavelmente gay. Além dos meus rótulos, alguém que queria conversar. Foi
então que senti um leve desconforto na barriga e me despedi.
Foi entrando na rua XV que lembrei a razão de estar aqui, nessa
cidade. Luzes douradas nos postes. Pedras gritando história. Pessoas que
acreditei ficarem bonitas por estarem vestidas no frio, isso era pura ilusão.
Mas ri de mim mesmo. Segui o caminho.
A dor aumentou, mas é preciso levar em consideração a
inabilidade em distinguir órgãos. Seria intestino? Rim? Bexiga? Quem mandou
ouvir as orientações de autoconsciência da terapeuta? A dor, felizmente, não
era a única sensação perceptível. Sabores, aromas e cores de repente puderam
abrir a oportunidade para se ressignificar.
Há quem acredite que a dor é um caminho pra entender o prazer.
Eu não acredito que é preciso comer brócolis pra gostar de chocolate.
Passos lentos. Respiração suave. Histórias entrelaçando-se pelos
pontos cardeais. O sino de uma bicicleta avisa os desatentos. Brilhos de vidro
no chão realçam o marketing de uma loja de vestidos de noiva. Pelo vitral de
uma porta qualquer, há uma senhora aflita esperando atendimento. Na frenesi
diária, inútil. No momento, sutil. Tal como Amélie Poulain criando histórias e
personagens para tornar a ausência mais suportável.
Em meio a passos e pensamentos, o portão está a frente. Escadas.
Um insight dito em voz. Foi quando a terapia assentou-se no trono da razão, e
deu voz ao imperativo vital das sensações e emoções: a dor era apenas a
prazerosa e primitiva vontade de...
- Preciso mijar.
terça-feira, 18 de abril de 2017
Limbo
sábado, 18 de abril de 2015
Paixão
sexta-feira, 18 de abril de 2014
Memórias de um tempo que não vivi
Olimpos Particulares
Tédio
quinta-feira, 18 de abril de 2013
O Grande Insight
Aforismo bacana para um jornalismo ao modelo de Günter Wallraff. O uivo é desagradável aos ouvidos humanos, geralmente produzido por um canino solitário, que procura encontrar outros da matilha. Leões alados são raros, uivam para encontrar outros raros leões alados.
As lendas humanas mais verdadeiras e menos verdadeiras sobre a Verdade. Histórias sobre eu, sobre você, sobre mafagafos e medusas. É sobre possibilitar novos ideais mesmo quando parecem impossíveis. É sobre paradoxos.
Não são relatos históricos para serem lembrados no século XXX, nem contos da região oeste do Paraná, por mais que tal pano de fundo recheado de araucárias não será menosprezado.
É sobre os olhos reluzentes de almas criativas que decidiram se encarnar por aqui. O Leão Alado uiva os sentimentos ocultos de amigos e desconhecidos que talvez não serão lembrados pela injusta história.
Ao invés de ficar listando mil e um talentos (suspeitos) numa tentativa de se mostrar como uma vitrine ao mundo guiado por relações comerciais, apenas deixo o mistério. Que significa Leão Alado: muitas cousas e também nada. É inspiração e também não é.
Nomes abstractos. Realidade viva.